O risco, vale lembrar, incorpora duas dimensões: a primeira refere-se à identidade entre o possível e o provável, aspectos que pressupõem alguma forma de apreender a regularidade dos fenômenos. A segunda refere-se à esfera dos valores: risco pressupõe colocar em jogo algo que é valorizado. Inevitavelmente, pois, a incorporação da noção como um dos aspectos fundantes da sensibilidade moderna foi fruto de transformações sociais e tecnológicas. Quanto às transformações sociais, os contornos da sociedade de risco são definidos a partir de duas reorientações. A primeira poderia ser resumida como a progressiva laicização da sociedade e a segunda está associada às transformações nas relações econômicas e sociais que são resumidamente contempladas no que veio a ser chamado de capitalismo comercial. A perda de hegemonia da Igreja Católica e a ascensão do protestantismo nos países do Norte da Europa favoreceram uma forma de racionalidade condizente com a formatação da revolução científica. Já a abertura do comércio favoreceu o desenvolvimento de novas estruturas políticas, incluindo aí a noção de soberania sobre territórios nacionais que levou à emergência dos Estados-nação. Quanto às transformações tecnológicas, é a emergência da teoria da probabilidade o fator mais relevante para a formatação do conceito moderno de risco. Esta é uma história curiosa. Apesar das brilhantes realizações dos pensadores da Grécia Clássica e da civilização arábica, nenhum desses povos chegou a formular o conceito matemático de probabilidade. Aos gregos certamente faltava um sistema de notação numérica que permitisse o cálculo probabilístico; e aos árabes, após Maomé, muito provavelmente faltava uma filosofia capaz de pensar o futuro como passível de controle. A emergência do pensamento probabilístico forneceu o terreno necessário para pensar os riscos como passíveis de gerenciamento. Foi necessário, para isso, que se adotasse, na Europa, um sistema de notação numérica que permitisse cálculos complexos. O sistema arábico, introduzido no século XIII na Itália por Fibonacci, serviu bem a essa causa. Mas não bastava um sistema de notações: passaram-se 400 anos antes que emergisse a teoria da probabilidade. Foi necessário ainda que ocorressem transformações internas, na esfera da epistemologia, que possibilitariam uma ressignificação do que era considerado como conhecimento legítimo, acatando a inferência como procedimento legítimo de conhecimento. Sem inferência, é óbvio, não seria possível uma teoria da probabilidade e seria impensável 'jogar' com o futuro. Entretanto, a emergência da noção moderna de risco sustenta-se num movimento mais geral de crença na racionalidade humana. Esse eixo pontuará as relações sociais sobre risco por longos séculos. São os cálculos sobre risco que têm papel fundamental na formatação da moderna valorização da 'segurança'. Não é por acaso que o desenvolvimento das instituições seguradoras está colado à postura atuarial de coletar dados populacionais e ao cálculo de probabilidades em função das regularidades assim evidenciadas. A história desses desenvolvimentos é fascinante. Temos, de um lado, uma onda de interesse pelas estatísticas populacionais que, como um 'tsunami', atropela a Europa inteira: tabelas de mortalidade e morbidade tornam-se potentes instrumentos para os biopoderes aos quais se refere Foucault. São as estatísticas populacionais que possibilitam o fortalecimento das técnicas de governabilidade. Mas, de outro lado, são os imperativos comerciais, de definição das perdas e ganhos no comércio de além-mar, que darão impulso à tecnologia dos seguros. Do começo tímido de seguros marítimos, passando pelos seguros de vida, chegamos à posição atual em que tudo pode ser segurado: a saúde, o carro, a vida, e até mesmo as perdas, através dos resseguros. Se, no caso dos seguros, a racionalidade prende-se à possibilidade de cálculo pela coleta cuidadosa de dados, na esfera dos comportamentos a racionalidade vai definir a valorização da postura de processador de informação que levará, mais modernamente, à valorização das ciências cognitivas. A arena da saúde, concebida agora não mais na perspectiva do gerenciamento dos riscos a nível das populações, mas como o auto-gerenciamento, constitui um excelente exemplo dessa nova mentalidade. É nessa esfera que se delineiam os contornos da educação em saúde e da postura prevencionista: provê-se a informação necessária para que as pessoas, como seres racionais, gerenciem seus comportamentos em busca da saúde plena. É nessa esfera que vemos emergir uma das mais potentes metáforas sobre os comportamentos frente ao risco: correr riscos. Mas a racionalidade própria da esfera dos comportamentos frente aos riscos tem ainda seu apoio numa orientação política sobre a vida em sociedade: a filosofia liberal. Há um aspecto específico dessa teoria que é de particular interesse para o estudo dos riscos: o utilitarismo. Na acepção de Bentham, o utilitarismo é uma doutrina ética embasada no pressuposto de que uma conduta será moralmente aprovável se promover o máximo de felicidade para o maior número possível de pessoas. Por 'utilidade' Bentham entende as propriedades de um objeto que induzam vantagem, prazer, bem ou felicidade, ou, o que para ele dá na mesma, permitem evitar os males, a dor e a infelicidade. Bentham, em sua teoria utilitarista, focaliza utilidade tanto na perspectiva individual quanto na da comunidade. Mas vê a comunidade como uma soma de suas partes constitutivas: portanto, como uma soma de individualidades. O utilitarismo de Bentham, como era então voga na Europa, estava embasado no pressuposto de que o principal motor da atividade humana é a busca de prazer e a fuga da dor. É essa forma de racionalidade que irá permear a teorização sobre o comportamento econômico na nascente disciplina Economia Política. A noção de utilidade, importada de um interessante personagem, Daniel Bernouilli, irá sustentar durante cerca de 250 anos a reflexão sobre o comportamento dos investidores, gerando o conceito de 'probabilidade subjetiva': o estudo sistemático das preferências e crenças que constituem o substrato da tomada de decisão sobre os riscos. Nessa longa trajetória, o que emerge como herança é a ambivalência entre a positividade dos riscos, no cruzamento entre ousadia/aventura, e o imperativo da gestão dos riscos, seja na perspectiva da obrigatoriedade de precaver-se pelos seguros, seja na perspectiva da avaliação pessoal dos riscos. Vale lembrar, mais uma vez, que a teoria da probabilidade emerge no contexto dos jogos de azar. Pascal, Fermat e outros artífices dos cálculos de probabilidade buscavam solucionar problemas gerados pelos jogos: como o gerenciamento das apostas no famoso caso do jogo de balla interrompido. Essa dimensão de jogo, em que perda e ganho estão presentes, permanece, assim, como substrato importante da racionalidade do risco. Entretanto, essa é uma racionalidade presa à crença na regularidade dos eventos e, portanto, na possibilidade de definir, com certeza, as probabilidades de sua ocorrência. A principal transformação dos riscos, da modernidade clássica para a modernidade reflexiva, é justamente a realização de que os riscos modernos são pautados pela incerteza. À racionalidade da regularidade sobrepõe-se a perspectiva do caos. |
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